Sobre a Filosofia Formalista da Matemática - Parte I

 No Capítulo intitulado "A Filosofia Formalista da Matemática" (pp. 380-386) da obra A Experiência Matemática (1989) os autores P. Davis e R. Hersh destacam que: 

    "Nos meados do séc. XX, o formalismo tornou-se a atitude filosófica dominante nos textos e outros escritos 'oficiais' da matemática. O construtivismo permaneceu como heresia com somente poucos adeptos. O platonismo  era e é acreditado por (quase) todos os matemáticos. Mas, como uma religião subterrânea, é praticado secretamente e raramente mencionado em público."

    "O formalismo contemporâneo descende do formalismo de Hilbert, mas não é a mesma coisa. Hilbert acreditava na realidade da matemática finita. Ele inventou a metamatemática a fim de justificar a matemática do infinito. Este realismo do finito com o formalismo do infinito é ainda defendido por alguns autores. Mas, mais frequentemente, o formalista não se preocupa com esta distinção. Para ele, a matemática, a partir da aritmética, é somente um jogo de deduções lógicas." [Minha ênfase].

    "O formalismo define a matemática como a ciência das demonstrações rigorosas." [Minha ênfase].

    "Resumidamente, a matemática, para o formalista, é a ciência das deduções formais, dos axiomas aos teoremas. Seus termos primitivos não são definidos. Seus enunciados não têm conteúdo, até que lhes seja fornecida uma interpretação." [Minha ênfase].

De fato, de acordo com a abordagem fundacional da corrente formalista, a matemática pode ser considerada como uma ciência (não empírica) das deduções formais na qual os enunciados teoréticos não são interpretados. Nesta acepção, a filosofia da matemática tem como 'objeto de estudo' os sistemas formais. E, por conseguinte, investiga, p.ex., as provas metamatemáticos de consistência, completude, categoricidade e decidibilidade dos sistemas formais para as diversas teorias matemáticas.

Como observa o prof. Manuel Lourenço no verbete sobre o Programa de Hilbert, v. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos, Editores Branquinho, Murcho e Gomes (2006), pág. 627:

    "O problema crucial é que esses meios finitistas, tais como definidos anteriormente, têm um âmbito de aplicação relativamente pequeno, e, logo, na aritmética dos números inteiros é preciso lançar mão de processos não-finitistas, como, p.ex., no princípio do mínimo de uma propriedade aritmética. Assim, o método de assegurar o significado de uma teoria [axiomática abstrata] tem de ser revisto, e a ideia de Hilbert foi a de que a fonte de significado deve ser a demonstração da consistência da teoria. Assim, qualquer teoria axiomática abstrata teria significado, i.e., seria capaz de descrever uma estrutura, se houvesse uma demonstração de que dos axiomas por meio de regras de inferências não poderia derivar uma contradição." [minha ênfase]

O prof. Jairo da Silva --na obra Filosofias da Matemática (2007), pág. 193-- observa, de maneira concernente a essa questão do significado, que:

    "Claro que do ponto de vista do próprio Brouwer uma demonstração de consistência, ainda que segundo as mais estritas condições finitárias -- ainda mais rigorosas que as intuicionistas --, não significa grande coisa, já que a ausência de contradição não garante a verdade (o que, aliás, Kant já dissera).  Na realidade, Hilbert nunca explicou a contento em que sentido uma demonstração de consistência tem relevância epistemológica. Uma resposta possível a essa questão seria considerar a matemática fundada na intuição que descreve a 'mecânica' de um sistema formal -- como a única que a rigor nos fornece algum conhecimento, e suas extensões simbólico-formais consistentes como meros jogos simbólicos sem significado cuja única função é facilitar a nossa vida, possibilitando a derivação de asserções significativas por métodos mais eficientes."

O Prof. Jairo da Silva acrescenta que: "Essa garantia [da verdade] se daria pela demonstração da consistência da matemática formalizada no seio de uma matemática cuja verdade é evidente. O Programa de Hilbert comportava assim dois momentos: (1) a formalização das tradicionais teorias matemáticas (a aritmética dos reais, a análise, a teoria dos conjuntos etc.) e (2) a demonstração da consistência dessas versões formalizadas da matemática standard numa aritmética finitária cuja veracidade poderia ser diretamente verificada." [veja pág. 195 de da Silva(2007)].

Do meu ponto de vista, o problema do método de acordo com a abordagem formalista --para assegurar o significado de uma teoria matemática, bem como o caráter epistêmico de uma prova de consistência da teoria-- conforme os autores destacam acima, poderia ser reconsiderado em consonância com a minha proposta, a seguir, fundamentada no resultado estabelecido em uma publicação recente [veja a postagem intitulada Informes: Publicação dos Proceedings of the 19th Brazilian Logic Conference (XIX EBL) - no artigo "A note on Tarski's remarks about the non-admissibility of a general theory of semantics", pp. 573-582);  do Journal of Applied Logics - IFCoLog Journal of Logics and their Applications, Vol. 9 N. 1, 2022]. Proposta na qual podemos construir a partir de qualquer sistema axiomático escolhido (como uma base) para a aritmética (p.ex., a Aritmética Primitiva Recursiva (APR) ou a Aritmética de Heyting, ou qualquer outra versão axiomática da aritmética aceitável do ponto de vista intuicionista) uma "Aritmética Generalizada" (AG) de ordem superior  (denumerável) transfinita (Epsilon_0). Admitindo-se como um critério epistêmico para o limite superior de consistência de AG o metateorema da indefinibilidade da verdade (de Tarski) de tal modo que, com base neste critério, podemos estabelecer um sistema maximal consistente para AG

É claro que, como todos os intuicionistas desde de Brouwer, estou admitindo os ordinais transfinitos da forma alpha < epsilon_0, haja vista que de acordo com Dummett (veja ref. bibliogr. abaixo): "a tese segundo a qual não há um infinito completado [i.e., atual] significa simplesmente que tomar uma estrutura infinita, consiste em compreender o processo que a gera, e que se referir a uma tal estrutura, é se referir a esse processo, e, por conseguinte, reconhecer a estrutura como infinita, é reconhecer que o processo não termina." [meus itálicos]. Nesta acepção, podemos pressupor a construção, enquanto processo formal gerador, de uma hierarquia transfinita (denumerável) de conjuntos (potencialmente) denumeráveis de símbolos aritméticos em conformidade com a construção da AG introduzida em Sarmento (2022).

Nesta abordagem alternativa para um enfoque de caráter formalista estou admitindo --ao contrário do programa formalista original de Hilbert--,  a introdução do Esquema T para a definição da verdade (conforme Tarski) em cada um dos níveis superiores (i.e., >1) da hierarquia transfinita. Como consequência dessa abordagem podemos estabelecer um metateorema de completude para AG, demonstrando-se todas as sentenças aritméticas verdadeiras expressáveis em AG. Em uma postagem posterior continuaremos a discutir essa variante formalista.

    Como Davis e Hersh observam, na referida obra, "uma das razões para a dominância do formalismo foi sua ligação com o positivismo lógico. ... A 'Escola de Viena' dos positivistas lógicos defendia o objetivo de uma ciência unificada, codificada em um cálculo lógico formal e com um único método dedutivo. A formalização era defendida como objetivo de todas as ciências."

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Dummett, M. (1977)    Elements of Intuitionism, Oxford University Press; p.56

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