No séc. XIX, a descoberta de geometrias não euclidianas foi um marco importante no desenvolvimento da matemática, pois mostrou que sistemas geométricos alternativos à geometria elaborada por Euclides (cerca de 300 A.C.) são igualmente legítimos. Isto significa que as Geometrias de Lobachevsky e de Riemann constituem sistemas axiomáticos de espécie diversa e, contudo, equiconsistentes; apresentam modelos matemáticos que permitem interpretar, de modo análogo ao da euclidiana, os cinco postulados básicos dessas geometrias. Kant, em sua Crítica da Razão Pura, acreditava que "a geometria é uma ciência que determina sinteticamente, e portanto a priori, as propriedades do espaço". De acordo com Kant, o espaço geométrico 'real' estaria, por conseguinte, determinado pela Geometria de Euclides. Poincaré observou que, se de fato os axiomas da geometria fossem 'juízos sintéticos a priori', "estes deveriam se impor à nossa compreensão com tal força que não seria admissível conceber uma proposição contrária [refere-se a uma forma de negação do (quinto) Postulado de Euclides], nem muito menos construir sobre ela um novo sistema teórico" [minha ênfase]. Não haveria, portanto, uma única geometria para descrever o espaço. E, consequentemente, a geometria euclidiana, ao contrário do que supunha Kant, não constitui uma ciência que determina de modo sintético e a priori as propriedades do espaço 'real'.
Philip Davis e Reuben Hersh, no livro "A Experiência Matemática", no capítulo intitulado "O Mito de Euclides" expressam o seguinte ponto de vista sobre a 'crise nos fundamentos da matemática': "A visão que os manuais dão da filosofia da matemática é estranhamente fragmentária. O leitor fica com a impressão de que o assunto surgiu por inteiro pela primeira vez no fim do século dezenove, em resposta às contradições da teoria dos conjuntos de Cantor. Naquela época, falava-se de uma 'crise dos fundamentos'. Para restabelecer os fundamentos apareceram em cena três escolas, e gastaram trinta ou quarenta anos a discutir entre si. Verificou-se que nenhuma das três podia realmente fazer muito a respeito dos fundamentos, e a história terminou incompleta uns quarenta anos atrás, com Whitehead e Russell abandonando o logicismo, o formalismo de Hilbert derrotado pelo teorema de Gödel, e Brouwer a pregar o construtivismo em Amsterdã, ignorado por todo o resto do mundo matemático."
"Este episódio da história da matemática é na verdade notável. Certamente foi um período crítico na filosofia da matemática. Mas, por uma mudança marcante no significado das palavras, o fato de que o fundacionismo foi em um certo período a tendência dominante na filosofia da matemática conduziu à identificação virtual da filosofia da matemática com os estudos dos fundamentos. Uma vez feita essa identificação, ficamos com a impressão peculiar: a filosofia da matemática foi um campo ativo durante quarenta anos. Foi despertada pelas contradições da teoria [ingênua] de conjuntos, e após algum tempo voltou a dormir."
"Em verdade, sempre houve um pano de fundo filosófico, mais ou menos explícito, do pensamento matemático. O período fundacionista foi um em que matemáticos preeminentes estavam abertamente preocupados com problemas filosóficos, e se empenharam em controvérsias públicas sobre eles. Para entender o que aconteceu durante aquele período, dever-se-ia ver o que aconteceu antes e depois." ... "O Paradoxo de Russell e outras antinomias mostraram que a lógica intuitiva, longe de ser mais segura do que a matemática clássica, era na verdade muito mais traiçoeira, pois podia conduzir a contradições de uma maneira que nunca acontece na aritmética ou na geometria. Esta foi a "crise dos fundamentos", o problema central nas controvérsias do primeiro quarto do século XX."
Esta descrição concisa do referido período de "crise dos fundamentos" destaca que, com a descoberta das antinomias (não aporéticas, como no caso do reconhecimento das geometrias não euclidianas, no período de tempo anterior) ocorreu uma 'reação' da comunidade acadêmica matemática no sentido de restabelecer de forma segura e inquestionável a consistência dos princípios e métodos básicos das teorias matemáticas. Dessa forma, tendo em vista este objetivo, três importantes escolas fundacionais da matemática foram constituídas, a saber, as correntes logicista (e platonista), formalista (e nominalista) e construtivista (ou intuicionista). Como os autores enfatizam, nenhuma das três foi, de fato, bem sucedida em suas diretivas filosóficas. Pois, no caso da doutrina logicista o projeto de Russell não obteve êxito na redução lógica estrito senso da aritmética elementar; no caso do programa formalista de Hilbert, as provas de consistência absolutas (via aritmetização), para as diversas teorias matemáticas, falharam no âmbito da própria aritmética; e a doutrina construtivista, por sua vez, não foi capaz de estabelecer de forma categórica que a sua aritmética seria consistente apenas por rejeitar certos princípios da lógica clássica (como o 'princípio do terceiro excluído' para conjuntos infinitos), assim como a rejeição das definições impredicativas.
A seguir, discutiremos, respectivamente, os conceitos de aporia e antinomia de uma perspectiva lógico-filosófica.
Sobre as aporias
Conceito de aporia. Denominamos de aporia os argumentos
contrários e igualmente concludentes com respeito a um mesmo tópico.
Aristóteles definia as aporias como “a igualdade de conclusões contraditórias”.
Exemplo:
considere, inicialmente, os seguintes axiomas da geometria euclidiana:
·
Postulado 1: Dados dois pontos distintos, há um único segmento de reta que os une;
·
Postulado 2: Um segmento de reta pode ser prolongado indefinidamente para construir
uma reta;
·
Postulado 3: Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer, pode-se construir uma
circunferência de centro naquele ponto e com raio igual à distância dada;
·
Postulado 4: Todos os ângulos retos são congruentes (semelhantes);
·
Postulado 5: Por um ponto P exterior a uma reta r pode-se traçar apenas uma
reta paralela a esta reta r. Ou, de modo equivalente, podemos
expressar: Se duas linhas intersectam uma terceira linha de tal forma que a
soma dos ângulos internos em um lado é menor que dois ângulos retos, então as
duas linhas devem se intersectar neste lado se forem estendidas
indefinidamente. (Postulado de Euclides ou “Postulado das Paralelas”)
Considere, agora, as geometrias não euclidianas de Lobachevsky e de Riemann, denominadas, respectivamente, de geometria hiperbólica
e geometria elíptica. Na hiperbólica temos a seguinte forma de negação
do Postulado 5: ‘existe uma infinidade de retas paralelas à
inicial que passam no mesmo ponto’; enquanto, na elíptica, a negação pode
ser expressa como: ‘não há nenhuma reta paralela à inicial’.
A partir dessas modificações (ou formas negativas) do Postulado
5, podemos elaborar argumentos distintos, igualmente válidos, de modo que
seja possível concluir, por exemplo, que, no caso da geometria hiperbólica,
‘a soma dos ângulos internos de um triângulo é menor que 180º’ e, no
caso da geometria elíptica, ‘a soma dos ângulos internos de um triangulo
é maior que 180º’.
Conclusão: temos assim sistemas (axiomáticos)
para geometrias diversas que nos permitem obter formas contraditórias de
conclusões com base em argumentos igualmente válidos, partindo-se
de premissas diferentes. Portanto, teorias distintas sobre um mesmo
tópico apresentam caráter aporético.
A estrutura formal dos argumentos para a oposição aporética
Sejam, p. ex., 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4 os postulados da Geometria de Euclides e 𝑃5 o postulado de
Euclides, então o seguinte argumento é válido (pois, é demonstrável nesta geometria):
(1) 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃5 ⊢ 𝑇, onde T denota a sentença: ‘a soma dos ângulos internos
de um triângulo é 180º’.
Nota: o símbolo ‘⊢’ em (1) denota o operador de consequência sintática; isto significa
que a sentença T é a conclusão obtida, por demonstração, a partir das premissas 𝑃𝑖(i = 1,
..., 5), i.e., o argumento (1) é um teorema da Geometria Euclidiana.
• Na Geometria de Lobachevsky, ou geometria hiperbólica, temos que:
(2) 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃′5 ⊢ ¬𝑇, onde 𝑃′5 denota a sentença: ‘existe uma infinidade de
retas paralelas à inicial que passam no mesmo ponto’ e ¬𝑇 expressa uma forma de
negação da sentença T anterior, i.e., ‘a soma dos ângulos internos de um triângulo é
menor que 180º’.
• Na Geometria de Riemann, ou geometria elíptica, temos que:
(3) 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃′′5 ⊢ ¬𝑇, onde 𝑃′′5 denota a sentença: ‘não há nenhuma reta
paralela à inicial’ e ¬𝑇 denota, analogamente, uma forma de negação da sentença
T, i.e., ‘a soma dos ângulos internos de um triangulo é maior que 180º’.
Observação: os argumentos (1), (2) e (3) são igualmente válidos, e apresentam formas
contraditórias de conclusões; não obstante, partem de premissas distintas (no caso, os
postulados estabelecidos acima).
Conclusão: as geometrias não euclidianas constituem um exemplo de construções teóricas
(axiomáticas) de caráter aporético no âmbito da matemática.
Sobre as antinomias.
1. Antinomia. Em geral, definimos uma antinomia como uma espécie de paradoxo
não-aporético, i.e., na seguinte acepção: uma antinomia consiste em duas
sentenças contrárias ou contraditórias deduzidas conjuntamente a partir de
argumentos igualmente válidos, no âmbito de uma mesma linguagem-objeto (ou
de uma mesma teoria formal).
2. Representação Formal das antinomias.
Suponha que em uma certa teoria ℑ, com os seguintes axiomas: 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃5,
formalizada em uma dada linguagem-objeto ℒ, tenhamos os seguintes argumentos
igualmente válidos:
1. 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃5 ⊢ 𝛼,
2. 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃5 ⊢ ¬𝛼,
3. de (1) e (2) deduzimos: 𝑃1, 𝑃2, 𝑃3, 𝑃4, 𝑃5 ⊢ 𝛼 ∧ ¬𝛼.
Assim, em (3) a sentença ‘𝛼 ∧ ¬𝛼’ expressa uma contradição e, por conseguinte,
dizemos que a teoria ℑ é inconsistente. Haja vista que, em ℑ temos uma condição
antinômica, i.e., uma contradição estrita entre sentenças efetivamente demonstradas
a partir dos mesmos axiomas de ℑ.
• Classificação das antinomias de acordo com Ramsey: antinomia lógica e
antinomia metamatemática.
De acordo com Ramsey, podemos classificar as antinomias em dois grupos distintos
conforme os conceitos sejam diretamente expressáveis ou não na linguagem-objeto
das teorias matemáticas. Com base neste critério, temos:
1. Antinomias lógicas: aquelas que envolvem noções expressáveis na
linguagem da teoria de conjuntos tais como, p.ex., a teoria intuitiva de
conjuntos de Cantor;
2. Antinomias semânticas (ou metamatemáticas): aquelas que abrangem
noções como ‘verdade’ ou ‘definibilidade’, noções que não podem ser
formuladas diretamente no interior das linguagens formais das teorias
matemáticas.
• Exemplos:
No primeiro grupo (i.e., das antinomias lógicas) temos, p.ex., o “Paradoxo de Russell” (1902). No livro Introduction to Mathematical Logic (1997), de E. Mendelson, pág. 1:
“Um conjunto significa qualquer coleção de objetos – por exemplo, o conjunto de todos os números naturais pares, ... Os objetos que constituem um conjunto são denominados seus membros ou elementos. Conjuntos podem ser eles próprios membros de conjuntos; por exemplo, o conjunto de todos os conjuntos de números naturais tem conjuntos como seus membros. Muitos conjuntos não são membros deles próprios. ... Entretanto, podem existir conjuntos que pertençam a si mesmos – por exemplo, o conjunto de todos os conjuntos [denominado de ‘conjunto universal’]. Agora, considere o conjunto V de todos aqueles conjuntos X tais que X não é membro de X. Claramente, pela definição [do conjunto V], V é um membro de V se, e somente se, V não for membro de V. Assim, se V for um membro de V, então V não é um membro de V; e, se V não for um membro de V, então V é um membro de V. Em qualquer caso, V pertence a V e V não pertence a V."
Informalmente, podemos expressar que, a partir da definição do conjunto V, segue que [com base no 'princípio de abstração (irrestrito)']:
(X)(X pertence a V se, e somente se, não é o caso que (X pertença a X)) (*)
onde "(X)" denota o quantificador universal 'para todo X';
da sentença (*) decorre, pela lei de instanciação universal (substituindo-se X por V), que:
V pertence a V se, e somente se, não é o caso que V pertença a V. Contradição.
No segundo grupo (i.e., das antinomias semânticas) temos, p.ex., o “Paradoxo de Berry” (1906). No livro de Mendelson (1997), pág. 3:
“Há apenas um número finito de símbolos (letras, sinais de pontuação etc.) na língua portuguesa. Portanto, há somente um número finito de frases em português que contêm menos que 200 ocorrências de símbolos (admitindo-se repetições). Por conseguinte, há apenas um número finito de números naturais que podem ser definidos por meio de uma frase em português contendo menos de 200 ocorrências de símbolos. Seja k o menor número natural que não é definido por uma frase em português contendo menos que 200 ocorrências de símbolos. A frase em itálico contém menos que 200 ocorrências de símbolos e define o número k.”
O paradoxo acima é construído devido ao fato de que não foi introduzida nenhuma restrição às regras de diferenciação da linguagem-objeto (no caso língua portuguesa) e da metalinguagem (no caso a própria língua portuguesa). Paradoxos dessa espécie são construídos em virtude do fenômeno linguístico de 'autorreferência' da linguagem. Vale observar que as linguagens naturais são semanticamente fechadas, ou seja, contêm a própria metalinguagem.
Em uma próxima postagem continuaremos com a discussão sobre o tema.
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