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Sobre o Intuicionismo (parte I)

 1.    O intuicionismo (ou construtivismo), uma das doutrinas finitistas para a fundamentação da matemática, pode ser considerado a mais influente doutrina da filosofia conceptualista do número.

    Kant é o precursor da corrente conceptualista relativa à aritmética uma vez que, sustentava que as leis da aritmética elementar eram a priori e sintéticas [veja neste blog postagens anteriores sobre a categorização de juízos sintéticos a priori] . De acordo com Kant, o conhecimento das leis do número consiste em uma atividade cognitiva essencialmente interna ao sujeito cognoscente, i.e., independente de qualquer conteúdo informativo extra-conceitual. Em outras palavras, o conhecimento matemático é a priori, visto que não é justificável pela experiência sensorial sendo, no entanto, sintético, pois não seria, de acordo com Kant, justificável estritamente pelo modo de entender os significados dos termos utilizados na linguagem matemática. 

    Nesta acepção, a verdade das fórmulas aritméticas (construídas a partir desses termos) seria condicionada a uma forma de intuição pura característica da própria atividade cognitiva.

    Assim, a concepção Kantiana da aritmética é baseada na intuição da contagem, ou seja, os números naturais existem se, e somente se, podem ser construídos por meio do ato de calcular e, por conseguinte, sua existência estaria condicionada à categoria do tempo. Isto significa que, Kant subscreve a doutrina do infinito potencial (ou das totalidades indefinidas) oposta à doutrina do infinito atual.

2.    O intuicionismo moderno foi iniciado com Brouwer; de acordo com sua perspectiva filosófica, todos os objetos matemáticos podem ser construídos a partir de uma espécie de intuição basal --denominada de duidade ('two-oneness')-- e, este procedimento pode ser realizado mediante a combinação de um número finito de vezes de duas operações: 'gerar um número ordinal finito' e 'gerar o número ordinal infinito simbolizado (pela letra do alfabeto grego) ômega'. Consequentemente, apenas conjuntos denumeráveis podem ser construídos com base nestas duas operações, i.e., conjuntos cujos elementos podem ser correlacionados por meio de uma correspondência 1-1 (i.e., injetiva) com os elementos de um número ordinal finito ou com aqueles do ordinal infinito denotado por ômega.

    Entre as várias versões do intuicionismo destacam-se:

  1. a escola russa com Yessenin-Volpin, que desenvolveu uma teoria dos números reais incorporando a Tese de Church [tese sobre a qual discutiremos em uma postagem futura]; nesta teoria, um número real é um número decimal cujos dígitos são o 'output' de uma função recursiva.
  2. o enfoque de Bishop, no qual a noção de uma função construtiva --tomada como primitiva-- constitui o substrato teórico para a substituição da matemática clássica por um corpo de resultados construtivos.
  3. o enfoque 'ultra-finitista' de van Dantzig, segundo o qual é impossível 'construir' um número natural tão grande como, p. ex., a potência de base 10 cujo expoente é a potência de base 10  elevada a 10; essa corrente radical caracteriza-se pela rejeição do princípio de indução matemática.
Na próxima postagem, discutiremos apenas o enfoque intuicionista de Brouwer-Heyting. 

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