Pular para o conteúdo principal

Sobre a linguagem como meio universal ou como cálculo.

 O professor Nelson Gomes no capítulo sobre "Neopositivismo e linguagem" - da coletânea Filosofia da Linguagem organizada por Peruzzo Jr., L. & Valle, B. (2016) da PUC PRESS - observa que: "Seguindo certas ideias formuladas pelo historiador da lógica Jean van Heijenoort (1912-86), o lógico finlandês Jaakko Hintikka formulou uma distinção entre duas concepções de linguagem que, segundo ele, seria uma pressuposição última na filosofia do século XX. Trata-se da distinção entre a linguagem como meio universal, de um lado, e da linguagem como calculus ratiocinator (cálculo de raciocínio), de outro (Hintikka, 1997)."[veja referência abaixo].

Na referência acima, Gomes (2016) acrescenta que na concepção acerca da qual a linguagem constitui um 'meio universal' exclui-se, necessariamente, a possibilidade de uma metalinguagem e, por conseguinte, impede-se a construção de qualquer espécie de teoria semântica. Gomes cita como advogados dessa tese: Frege, Russell, Wittgenstein e Quine.

Com respeito à concepção da linguagem como 'calculo de raciocínio', Gomes acrescenta que, de acordo com essa perspectiva, as linguagens são, de fato, reduzidas a "sistemas simbólicos governados por regras, de modo que, interpretá-los com o auxílio de metalinguagens é natural e legítimo. Tarski, Gödel e Carnap pertencem a esta segunda linha."

Como assinala Gomes, se tal diferenciação conceitual for considerada como pressuposto filosófico último, a questão sobre qual abordagem deveria ser característica da filosofia analítica da linguagem permanece indecidível.

De uma perspectiva histórico-conceitual, Leibniz é o precursor da proposta de uma lógica simbólica, de inspiração cartesiana, da mathesis universalis, ou seja, de um cálculo (conceitual) universal a priori, que permitiria estudar todas as combinações possíveis entre conceitos de quaisquer áreas da matemática (sendo extensível a qualquer área do conhecimento humano) a partir da ideia de aritmetização dos conceitos. 

Em 1847, com a publicação de Mathematical Analysis of Logic, de Boole, inicia-se uma nova época na história da lógica, retomando-se a proposta de Leibniz - de um calculus ratiocinator - mediante uma síntese entre a lógica formal aristotélica e o simbolismo leibniziano. Em Laws of Thought, publicado em 1854, Boole tomou como postulado que as leis fundamentais da lógica são de natureza algébrica relativamente à forma (ou estrutura sintática) justificando-se, assim, a apresentação da lógica sob a forma de um cálculo simbólico.

Frege, com o seu Begriffsschrift, publicado em 1879, desenvolvendo uma concepção de lógica oposta à de Boole, considera a ideia leibniziana de uma lingua characteristica (uma linguagem universal). Frege, nesta obra, tencionava, por um lado, a representação simbólica e o desenvolvimento da lógica de relações, que constituiu  a distinção básica entre a lógica escolástico-aristotélicae e a lógica moderna; por outro lado, estabeleceu o arcabouço linguístico para o conceito de sistema formal axiomático..

A oposição entre as abordagens de Frege e de Boole reside no fato de que a abordagem Fregeana, ao contrário da abordagem Booleana, não tencionava representar simplesmente uma lógica abstrata por meio de fórmulas, mas expressar um conteúdo por intermédio de uma linguagem simbólica. De acordo com Frege, o cálculo simbólico de Boole consiste apenas no aspecto formal da linguagem.

Observação: na próxima postagem, discutiremos a questão da não-decidibilidade da diferenciação conceitual 'lingua universalis vs. calculus ratiocinator' na condição de pressuposto último da filosofia do século XX.

_______________

HINTIKKA, J. Lingua Universalis vs. Calculus Ratiocinator: An Ultimate Presupposition of Twentieth-Century Philosophy. Dordrecht/Boston/London: Kluwer Academic Publishers, 1997.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Informes: Sobre os Fundamentos Lógico-epistêmicos da Inteligência Artificial

   Na postagem intitulada: " An Analysis of the Epistemological Foundations of Machine Learning ", publicado no blog SciELO em Perspectiva em 15 de agosto/24 [veja o link abaixo], apresento uma análise crítica dos fundamentos lógico-epistêmicos do aprendizado de máquina, com foco na limitação da autonomia dos sistemas de IA na geração de conhecimento. Contrastando essa possibilidade com as restrições teóricas impostas pelo teorema da incompletude de Chaitin , que estabelece um limite para a capacidade cognitiva da IA, de tal modo que a IA não pode superar a capacidade cognitiva humana. https://humanas.blog.scielo.org/en/2024/08/15/epistemological-foundations-of-machine-learning/       Esta postagem faz referência ao artigo publicado na Revista Transformação , intitulado: " Comentário a “Por trás da inteligência artificial: uma análise das bases epistemológicas do aprendizado de máquina” ", publicado em 05/07/202. O referido artigo pode ser acessado por...

Sobre a linguagem como meio universal ou como cálculo - II parte.

  A oposição calculus ratiocinator versus characteristica universalis  como apresentada na postagem anterior tem um caráter absoluto , com base em um resultado estabelecido recentemente por mim (veja postagem, neste blog, sobre a publicação dos Proceedings of the 19th Brazilian Logic Conference - XIX EBL , no Journal of Applied Logics - IFCoLog Journal of Logics and their Applications , Vol. 9 N. 1, 2022, do paper intitulado: "A note on Tarski´s remarks about the non-admissibility of a general theory of semantics", pp. 573-582), pois a partir do seguinte pressuposto: 'toda metalinguagem consiste em uma linguagem que admite, como objeto, outra linguagem (denominada de linguagem-objeto)'; nesta acepção, poderíamos indagar sobre a possibilidade de uma metalinguagem última , que desempenharia o papel de uma linguagem universal . Como o resultado estabelecido é bastante técnico, estou me restringindo apenas a algumas consequências filosófico-conceituais da demonstração d...

Sobre a Filosofia Formalista da Matemática - Parte II

 Nesta postagem, estou dando continuidade à discussão anterior sobre o Programa Formalista da Matemática a partir da versão original de Hilbert e cogitando a possibilidade de uma reformulação do referido programa a partir de certos aspectos lógico-formais com base em um resultado obtido em Sarmento (2022). Considere-se, inicialmente, o seguinte texto:  entrada   da  Stanford Encyclopedia of Philosoph y  sobre Hilbert’s Program   [ First published Thu Jul 31, 2003; substantive revision Fri May 24, 2019 ]  o autor Prof.  Richard Zach   observa que: "According to Hilbert, there is a privileged part of mathematics, contentual elementary number theory , which relies only on a 'purely intuitive basis of concrete signs'. Whereas the operating with abstract concepts was considered 'inadequate and uncertain', there is a realm of extra-logical discrete objects , which exist intuitively as immediate experience before all thought. If logical inference ...