segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Sobre o Logicismo (Parte I)

 1.    No prefácio dos Principia Mathematica (1910-13) de Russell-Whitehead destacam-se os dois objetivos principais do projeto logicista de fundamentação lógica da matemática:

  1. "provar que a matemática pura trata exclusivamente com conceitos definíveis em termos de um número reduzido de conceitos lógicos fundamentais, e que todas as suas proposições são deriváveis formalmente de um número reduzido de princípios lógicos fundamentais." [minha ênfase].
  2. "a explicação dos conceitos fundamentais que a matemática admite como indefiníveis constitui uma tarefa essencialmente filosófica."
    Cabe assinalar que (1) expressa os objetivos de: justificação epistêmica de logicidade dos conceitos básicos da matemática e a demonstração metalógica da analiticidade dos axiomas matemáticos. O primeiro requer uma teoria epistemológica reducionista enquanto o último pressupõe uma metateoria lógica que estabeleça formalmente a derivação dos axiomas matemáticos--e, por conseguinte, das sentenças matemáticas--, de princípios lógicos por intermédio de regras de inferência estritamente lógicas.

    Estes objetivos caracterizam a chamada tese logicista 'forte', i.e., a tese filosófica que postula o caráter a priori e analítico da matemática.

    De acordo com Benacerraf (1981) as diferentes versões do logicismo apresentam a seguinte estrutura geral:

  1. "as verdades da aritmética são traduzíveis em verdades da lógica." [minha ênfase].
  2. "a afirmação (1) é demonstrável por meio de: (i) definições para o vocabulário 'extra lógico' em termos 'estritamente lógicos'; (ii) uma prova de que as transcrições induzidas por essas definições transformam sentenças aritméticas verdadeiras em tautologias, bem como sentenças aritméticas falsas em contradições lógicas." [minha ênfase].
   2.    No extrato de Benacerraf considera-se a tese logicista 'fraca', i.e., aquela na qual seria suficiente mostrar que a aritmética seria reduzida à lógica matemática clássica (em uma linguagem de II ordem). Esta abordagem reducionista reside no fato de que o denominado processo de 'aritmetização' da análise concluído no final do séc. XIX, como resultado dos trabalhos de Cauchy, Weierstrass, Bolzano, Cantor e Dedekind, tornou rigorosos os cálculos diferencial/integral--eliminando-se, assim, a necessidade de recorrer a infinitésimos--, e permitiu o desenvolvimento da teoria dos números reais. As investigações de Frege, em 1884, nos Grundlagen, é o ápice deste processo. Frege considera a questão da reduzibilidade dos números naturais a outras entidades e a deduzibilidade dos teoremas da aritmética de outros teoremas. Mais precisamente, Frege introduz nos Grundlagen uma definição contextual (ou princípio de abstração), denominada por Boolos de 'Hume's Principle', que pode ser expressa da seguinte forma: 'os conceitos Fs e Gs têm o mesmo número se, e somente se, os conceitos Fs e Gs são equinuméricos'. 

    Formalmente, NF = NG  se, e só se, Eq(F, G), em que 'Eq" denota a relação de equinumerosidade, i.e., Eq(F, G) designa que 'F e G estão em uma correspondência 1-1 (biunívoca)'; e o símbolo de função 'N' representa uma função totalmente definida -- N é lido como 'o número de Fs tais que ... ', ou seja, 'o número de objetos que caem sob o conceito F'.
Observe que, no âmbito de uma linguagem de ordem superior, NF constitui um termo que denota qualquer objeto no domínio das variáveis ligadas que ocorrem na expansão de 'Eq'.
    Com base neste princípio de abstração Frege foi capaz de derivar o seguinte postulado da aritmética de Peano: 'todo número natural tem um sucessor (imediato)'. Além disso, no arcabouço da lógica de II ordem, o princípio de Hume implica a infinidade dos números naturais (o chamado Teorema de Frege). 
    Cabe observar que, como assinalado por Dummett, o princípio do contexto (enunciado nos Grundlagen) requer que a especificação do domínio de objetos, com a finalidade de assegurar a existência de seus elementos, seja efetuada por intermédio da determinação dos valores-verdade para as sentenças da teoria. De acordo com Dummett esse era o problema central dos fundamentos da matemática e, o status epistêmico das sentenças demonstráveis de uma teoria formal-axiomática -- como logicamente verdadeiras, ou analíticas -- um problema subordinado. 

    Na próxima postagem (parte II), secção 3, discutiremos sobre a inconsistência da chamada Lei Básica V dos Grundgesetze de Frege, e, além disso, apresentamos uma crítica concisa sobre a proposta de Crispin Wright acerca de uma abordagem logicista neo-Fregeana.

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 Benacerraf, P. (1981)    "Frege: The Last Logicist". Midwest studies in philosophy VI, p. 17-35, P. French (ed.).

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